12.19.2008

Felicidade guerreira por Dagoberto D. Teodoro

Falar de racismo entre os seres humanos é falar numa doença, que infelizmente não se contagia pelo ar ou qualquer outra forma de contato, mas sim pela desinformação e má concatenação de idéias.
Eu sempre gostei de ser negro. Na minha infância me desenvolvi por entre os meninos que assim como eu, também eram pés descalços, negrinhos alegres, bons de futebol e descomplicados.
Quando pequeno não sentia o quão pesado é o legado de ser negro. Ainda não tinha percebido quão barato é a carne negra. Para mim eu era gente, menino gente que gostava de brincar com outros meninos na rua o dia inteiro e a tardezinha ouvir a doce voz de minha mãe me chamando: “Pra dentro moleque tomá banho, pra jantá”.
Se o desconhecimento é a paz dos incautos, a tomada de consciência traz a luta mais renhida para perto. No entanto, a cada batalha vencida você se torna mais forte.
Comigo aconteceu exatamente assim, quando entrei na adolescência e precisei ganhar a vida. Primeiro emprego foi no pesado, numa borracharia na Vila Leopoldina perto do Ceasa. Às vezes, eram dez horas por dia, segunda a segunda, ao final do dia meu corpo saía moído.
As comparações entre mim e os pneus não me deixavam acanhados, até corroborava com meus agressores e autodenominava-me como um pneu careca.
Até que um dia, sem motivação intelectual alguma, apenas pela necessidade de ganhar mais, e trabalhar menos, decidi mudar de emprego. Na mesma Vila Leopoldina, arranjei um emprego de auxiliar de produção numa loja cerealista atacadista. O serviço era pesado, mas pelo menos agora tinha dia de descanso, carteira assinada, horário para entrar e sair. Deu pra voltar a estudar a noite. Terminar o ensino médio que, naquele tempo, ainda era o 2˚ grau.
A comparação com os pneus ficou para trás, mas os insultos e apelidos agora eram mais sofisticados e sarcásticos. Por ser alto e magro, um desses apelidos era “lingüiça de feijoada”. No entanto, o apelido mais usual era “saracura de brejo”, entre outros. Mas o que mais me incomodava era o de “Margarida”.
Por que Margarida? Porque minha orientação sexual era motivo de investigação por uma boa parte dos funcionários. “Olha a careca do Dadá, será que ele dá, será que não dá”.
Na escola também havia a pressão dos meus colegas e amigos de classe para que eu me tornasse um predador, mas eu estava sossegado, minha preocupação era sobreviver e deixar que os outros vivessem em paz.
Apesar de tudo, eu estava feliz, vivia para o trabalho, escola, casa, trabalho. A falta de consciência do legado dos meus antepassados não me incomodava. Cheguei a concordar, certa vez, que o melhor era não comentar essas coisas de negros, essa estória de racismo, preconceito era conversa fiada de negro baderneiro.
Em relação às piadas e ofensas de mau gosto, a minha postura nunca era de enfrentamento, sempre era de neutralidade, por vezes de ostracismo em mim mesmo.
Já havia completado dezesseis anos e, mais uma vez, movido pela necessidade de sobrevivência, decidi mudar de emprego, ganhar um salário melhor. Fui então, trabalhar como ajudante geral em uma concessionária ali mesmo nas imediações de Ceagesp. O ambiente era melhor, as pessoas eram menos hostis, e, por conseguinte, mais educadas. Comecei a ser até bem tratado. Que diferença! Tive a promessa de dono da loja de que, assim que me formasse no 2˚ grau e passasse a época do quartel, teria uma vaga no centro administrativo da empresa.
Naquela época, 1987, a informática ainda engatinhava no Brasil, e eu mesmo sem saber direito para que servia e sem condições de comprar uma máquina, entrei num curso de DOS.
Nesse novo emprego, comecei a me vestir, comer e falar melhor. As piadas cessaram, nem mesmo na escola havia mais chacotas.
Minha sexualidade não era insuflada, sentia-me mais sossegado, para mim era indiferente ser hetero ou homossexual, ou mesmo bissexual, ou até mesmo ter a necessidade de estar ou ter alguém mais íntimo. Eu queria progredir financeiramente.
Mas numa tarde de domingo de 1987, um acidente mudaria minha vida para sempre. Saltei em um paredão rochoso no litoral sul e fraturei minha coluna.
Fui socorrido, primeiramente num hospital do Vale do Ribeira; depois o hospital Sorocabano. Em estado letárgico apenas ouvia dos enfermeiros que me atendiam: “Coitado, tão moço, já inválido”.
Tornei-me paraplégico. Naquele momento, achei que minha vida havia acabado. Seguiram-se dois anos muito penosos para mim. Minha família se desestruturou, meu corpo se modificou drasticamente. Todas as funções diárias que eu fazia despercebidamente passaram a ser um desafio e uma conquista. Muita fisioterapia, terapia em grupo, muitas lágrimas sufocadas no travesseiro, privações das mais diversas ordens. Fiquei por algum tempo curtindo uma autopiedade e tendo dó de mim mesmo.
No entanto, meus professores do ensino médio me incentivaram a estudar mesmo deitado na cama do hospital.
Sem dinheiro, lutando judicialmente para que aquele acidente fosse reparado pelo menos financeiramente, isolado do mundo e das baladas, foi nessa situação que descobri a leitura, a palavra escrita, a mim mesmo.
Comecei a estudar por conta própria, lia tudo que caia em minhas mãos. Descobri o legado dos meus antepassados afro-brasileiros. Entendi o porquê de tanta discriminação em relação aos negros. O subemprego, os salários menores, a baixa escolaridade, o preconceito velado, as moradias distantes do trabalho.
Decidi enfrentar o mundão mais uma vez. Mas agora não só por uma questão de sobrevivência, mas também para minha auto-afirmação.
Na cadeira de rodas, enfrentava ônibus lotado, trens, estações sem acessibilidade, calçadas que desafiam a resistência até mesmo dos atletas mais bem preparados, mas toda essa adversidade foi enfrentada de cabeça erguida.
Encontrei a Educafro, fiz a minha primeira faculdade, aprendi a dirigir, me formei em Letras, passei no meu primeiro concurso público, continuei a estudar.
E agora, quando olho para trás, vejo que o menino ingênuo e inseguro que brincava de pés descalços e nariz sujo pelas ruas de Carapicuíba não existe mais: deu lugar a um homem consciente e lutador, mas ainda de bom coração, que gosta de ajudar as pessoas. Mesmo que seja só com palavras de incentivo, porque foram as palavras da minha leitura solitária no quartinho da minha casa que me ajudaram a entender que a felicidade de ser negro é uma felicidade guerreira.

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